Morte: crenças, rituais e aceitação

Como diferentes tradições honram o inevitável e lidam com a situação tão temporária da vida

Em muitas culturas, há uma inclinação para acreditar, desde a infância, que a morte deve ser rejeitada, pois está entrelaçada com o medo. Ela é absorvida como um conceito intrinsecamente relacionado à destruição e ao sofrimento, que muitas vezes vem na hora errada. Portanto, quando chega o momento da partida de um ente querido, mesmo as despedidas mais pacíficas ou necessárias são vistas como a pior coisa que poderia acontecer.

Graves at the Cemetery Stift St Peter Salzburg in Austria

Perdi meu pai em outubro de 2009 e minha mãe em março de 2015. A dor em ambos os casos era tão insuportável que demorei a me enxergar caminhando em direção a um futuro feliz, me projetando sem o amor e a presença física deles. Ainda me dói muito só de falar ou mesmo ao pensar sobre a ausência de ambos. Apesar de não ser religiosa, como já escrevi aqui antes, cresci sendo influenciada pela noção de que morrer significa um fim terrível.

Um pouco mais tarde comecei a questionar sobre vida após a morte; foi quando me deparei com o espiritismo e a encarnação. Esses credos ainda são um pouco obscuros ao meu entendimento, embora passem, às vezes, uma sensação de conforto sempre que tento me consolar de que a vida pode continuar. Ou talvez seja só eu querendo acreditar que exista uma vida após a morte...

Recentemente, meu ego ficou abalado ao ler o artigo de Aron Moss, um rabino australiano, que explica o mais assustador sobre a morte: “Não é o sofrimento que vem com a morte, nem os tormentos e o desconhecido que jazem além da sepultura. O maior medo é que sejamos esquecidos. É aterrorizante pensar que podemos deixar este mundo, despercebidos”. De acordo com Moss, não podemos enfrentar o fato de que o mundo continuará sem nós: tudo o que conquistamos, como sonhos, ambições, sucesso, fracasso e família, é reduzido ao nada. Essa declaração tão apropriada explica, infelizmente, como meu interior egoísta vislumbra a morte.

Flowers on a grave at a cemetery in the Netherlands
Spirit House in Ayutthaya in Thailand

Renascimento

Embora lidar com a separação possa ser assustador, como é para mim, no judaísmo a morte é vista como um ciclo eterno: há vida depois da vida e assim por diante. Também se acredita que quando o corpo físico não existe mais, a alma ascende e fica livre para estar perto de Deus. Isso não significa que não devamos sofrer. "As dores são nosso egoísmo de querer manter a mesma realidade material que temos", diz Marcel Berditchevsky, sociólogo e especialista em educação judaica, além de guia turístico em Israel. Para isso, a Torá (livros sagrados) ensina regras e ritos que orientam os períodos de luto, como rasgar pedaços de suas próprias roupas. Conhecida como "keriá", essa simbologia reconhece a perda e o coração partido, e que o corpo é uma peça de roupa usada pela alma.

Da mesma forma, no hinduísmo, a morte é vista como uma passagem e não como um ato definitivo. A encarnação é uma certeza para eles e ela continua indefinidamente até que o espírito se liberte do carma. Assim que alguém deixa a vida terrestre, rituais ajudam a alma a se desconectar do corpo, como a cremação. Embora essa prática seja condenada no judaísmo, ela é bem vinda pelos hindus, especialmente quando se tem a chance de fazer a última festa da vida - ou a despedida - em Varanasi, considerado por eles o lugar mais sagrado da Terra.

Morrer em Varanasi representa o caminho para a iluminação; depois de serem lavados e cobertos por sândalo, roupas e flores de calêndula, centenas de corpos são carregados todos os dias por parentes que descem os ghats nas margens do rio Ganges, para que as cinzas possam ser jogadas na água sagrada. Para evitar dúvidas, existem 88 ghats (escadarias), dos quais apenas alguns são dedicados à cremação, enquanto o restante é para banho e lavar roupas. Embora eu ainda não tenha tido a chance de testemunhar esse costume, me pareceu uma experiência deslumbrante enquanto assistia Tales by Light, um documentário do Netflix cuja 2ª temporada mostra a jornada do fotógrafo Stephen Dupont em funerais realizados com dignidade.

Buddhist grave cemetery in Amsterdam
Graves on the cemetery Nieuwe Ooster in Amsterdam
Opulent sepulture at cemetery in Amsterdam

Ecumênico

Uma lista infinita descreve formalidades ritualísticas em todo o mundo e a cada dia fico mais fascinada por elas. Por mais que a última cerimônia da vida possa distinguir as religiões, algumas delas têm métodos semelhantes no que diz respeito à purificação do corpo e da alma. Os muçulmanos também seguem a tradição de lavar o falecido (exceto os mártires) e esta tarefa é realizada por um designado que limpa cabeça, lado direito e lado esquerdo, três vezes. A sequência do banho é dada com água e folhas de Sidr, depois água e cânfora finalizada com água Qaraah; o mortal é então coberto por um sudário branco.

Embora islamismo e cristianismo não possam ser comparados - e esta não é, nem de longe, uma tentativa de fazê-lo - não pude deixar de notar que suas práticas funerárias são mais sóbrias e o conceito de Céu e Inferno está enraizado em ambas as doutrinas. Para ascender ao Paraíso, é necessário ter vivido uma vida correta. Um fato interessante, porém, é que o cristianismo é a religião que mais reúne devotos: dois bilhões divididos entre católicos, protestantes e ortodoxos. Isso pode indicar como a vida e a morte são geralmente tratadas no mundo.

Coffin Exhibition at the Tot Zover Museum in Amsterdam
Catholic death ritual exhibition Tot Zover Museum in Amsterdam
Jewish coffin Tot Zover Museum in Amsterdam

Consolo

Por mais que a mortalidade seja a única certeza da vida e esse processo contínuo manifeste que a morte já está acontecendo, o fato de não sabermos quanto tempo nos resta pode ser reconfortante e perturbador. É por isso que abraçar uma abordagem aberta em relação a esse assunto pode desmistificar tabus e aliviar aflições.

Em Amsterdã, esse é o lema do Museu Tot Zover, desde sua inauguração, em 2007: “Nosso espaço oferece informação, inspiração e ajuda as pessoas a refletirem. Falar e ler sobre a morte ou mesmo ver obras relacionadas ao tema pode confortar”, diz Guus Sluiter, Diretor da Instituição que apresenta uma série de exposições sobre rituais e outros aspectos sobre a morte e o morrer. O museu também afirma que a consciência da mortalidade intensifica nossa vida atual e o conhecimento das várias tradições torna os humanos mais benevolentes e respeitosos uns com os outros.

Na verdade, a maneira como cada um de nós lida com o conceito de morte diz muito sobre o indivíduo. “Na sociedade ocidental, a morte é temida, então as pessoas tendem a evitar falar sobre ela, enquanto o budismo nos convida a encará-la como parte da própria experiência natural que é a vida. É uma passagem inevitável, além de libertadora”, descreve Leonardo Pugliese, pesquisador independente que vive entre Brasil e Tailândia. A propósito, 95% da população deste país asiático é budista: não à toa é impossível ficar alheio à forte energia espiritual que inunda todo este reino.

Japanese ritual for death at the Tot Zover Museum in Amsterdam
Islamic funeral Tot Zover Museum Amsterdam
How different cultures handle death at Tot Zover Museum in Amsterdam

Partindo com naturalidade

Ao colocar as experiências alheias em perspectiva, reflito: quando uma pessoa muito estimada morre, aqueles que não aceitam a vida após a morte são os que mais sofrem? Quando compartilhei essa pergunta com o Museu Tot Zover, recebi a resposta: "Não necessariamente, embora as pessoas religiosas possam se consolar com a ideia de uma vida após a morte feliz. A maioria dos céticos simplesmente acha que não há nada após a morte, então não há muito com o que se preocupar". No entanto, o espaço vazio no futuro incerto pode ser desagradável. "Os ateus podem ter dificuldade em encontrar os rituais certos para marcar momentos importantes como a morte, uma vez que as 'prescrições' religiosas são abandonadas", acrescenta Sluiter.

Pude entender que não se trata de confrontar, menos ainda escapar do fim de nossas vidas. No entanto, como não sofrer quando um pedaço do nosso coração foi tirado de nós? “Minha avó dizia que não há como nos prepararmos para a partida de um ente querido. No entanto, respeitando o ciclo da vida, de viver e morrer, podemos ter paz interior e serenidade”, explica a profissional de Recursos Humanos de San Diego (EUA), Fabiola Fujiwara, cuja herança japonesa a ensinou que o luto anda de mãos dadas com o respeito.

Ao final da minha investigação sobre a perecibilidade de nossa condição humana, e depois de ter aprendido muito com pessoas gentis de diferentes origens, me vejo tentando honrar a morte em vez de vê-la como algo devastador. Que todos possamos entender isso, com amor e compaixão, quando chegar a nossa hora, seja quando for. Afinal, nada retrata mais a nossa existência do que a vida e a morte. Você não concorda?

Comentários

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Letícia Duque Guidotti
Adorei conhecer mais sobre o que outras culturas pensam sobre a morte e seus diferentes rituais. Achei reconfortante, afinal a morte está presente constantemente em nossas vidas, assim como um dia morre e outro nasce, desta forma são os ciclos da natureza. Segundo Bert Hellinger " A morte está a serviço da vida." Quando um menbro familiar morre, os vivos passam por uma transformação dolorida, mas cheia de potência e adubo, transformando o ambiente fértil para que algo possa nascer!!!
Guide Me To
Que bom receber suas análises perspicazes e muito interessantes! Obrigada! E essa sensação "reconfortante" que você menciona foi justamente uma das que eu também encontrei, no processo desta matéria, que também quis muito passar adiante. A transformação dolorida é inevitável, fato, mas também começo a entender a transformação dentro do ciclo da natureza, que não deixa de ser muito bonito e essencial.
Patrícia Serra
Excelente texto! Excelente reflexão!! Nós faz pensar com leveza um tema que em geral é muito doloroso!
Guide Me To
É verdade! Talvez quanto mais falarmos abertamente, com leveza e sem pudor, melhor conseguimos encarar algo tão natural e inevitável. O que não significa que não será doloroso! Obrigada por ler e comentar!
Patrícia Serra
Excelente texto! Excelente reflexão!! Nós faz pensar com leveza um tema que em geral é muito doloroso!