My Last Drink com o bartender Kennedy Nascimento

Muito antes de qualquer um de nós sonhar em viver sob regras socialmente tão restritas, dentro de uma quarentena interminável, tive a idéia de perguntar a alguns amigos bartenders que admiro muito: qual seria o Último Drink da sua vida?

Engraçado que ao escrever esta matéria, quando o Covid-19 começou a nos assombrar, o tema Última Drink parece fazer mais sentido que nunca: estamos longe do fim do mundo (acredito e assim espero!), mas quantos de nós pensaram naquele último momento entre amigos no bar? E se pudéssemos voltar atrás, qual seria o drink, a companhia, o ambiente e o momento que escolheríamos?

Em momentos de distanciamento social, nossa relação com tudo e com todos adquiriu novas perspectivas. Uma das mudanças mais drásticas - muitos vão concordar comigo -, é a proibição de bares e restaurantes receberem sua clientela, que não apenas na porta para delivery ou take away.

Somos movidos a contato humano, trocar e compartilhar, e por mais que as facilidades digitais provem alta eficácia, não vemos a hora de marcar um encontro com nossos amigos e família fisicamente, para expressarmos como somos dependentes (que bom!) de contato físico e relacionamentos palpáveis, reais, em detrimento dos virtuais. Felizmente, quando convidei meu amigo bartender Kennedy Nascimento para participar desta série, seu bar preferido - e escolhido para reverenciar seu My Last Drink - ainda estava aberto.

Kennedy completa 10 anos de carreira em 2020. Sempre admirei muito seu trabalho, entusiasmo, foco e determinação (sem contar sua elegância!). Direto do Boca de Ouro, um bar super autêntico e bem cuidado pelos donos na região de Pinheiros, em São Paulo, Kennedy e eu batemos um longo papo que compartilho na íntegra:

O bartender brasileiro Kennedy Nascimento

Você pensou muito para decidir que o Boca de Ouro seria o lugar onde você tomaria seu Último Drink?

Não demorei para decidir pelo Boca de Ouro, mas fiquei em dúvida, sim, entre quais seriam. Há uns quatro ou cinco anos, o drink mais marcante que eu poderia tomar, no lugar mais legal pensando em futuro, tendência e história foi no Frank Bar. Mas desde 2012 ou 2013, quando o Boca de Ouro abriu, é o lugar onde me sinto em casa, ondo tomo um drink e não penso em mais nada, puro prazer.

Quando vou ao Frank Bar, mesmo a lazer, invariavelmente acaba me remete a uma memória técnica (Spencer e eu trabalhamos juntos muito tempo). Sem contar que o Boca de Ouro é um tipo de negócio no qual eu acredito muito: a história começa com dois jornalistas que trabalhavam na Editora Abril, juntaram suas economias pra vender cerveja artesanal e conforme a demanda aumentou, começaram a preparar drinks e se especializaram nisso.

Desde o começo são os mesmos donos com um parceiro na cozinha e todos estão sempre presentes. Pra mim, bar tem que ter dono e aqui eu sinto isso. Se eu fosse ter uma bar, este seria o modelo que eu seguiria: fico atrás do balcão, outro na cozinha, talvez alguém ao meu lado, e acabou. Não uma indústria, mas um lugar feito por algumas pessoas. Pra ter alma, bar tem que ter o dono presente.

E de 0 a 10, qual a probabilidade de você ter seu próprio bar?

10! Mas vai depender do que acontecer nos próximos anos. Comecei minha carreira buscando entender o mercado e a mudança de sair desta área direto para a indústria foi complementar. Embora eu já conhecesse esse business como cliente, depois bartender e chefe de bar a gerente e gestor de um grupo de bares - quando cuidei dos bares do grupo Vegas -, eu sentia que antes de ter meu negócio precisava entender o 360 desta indústria, que ainda era uma incógnita na minha cabeça. Ou seja, como entender as demandas de um lado e do outro, como funcionam parcerias e como eu poderia ser um bom mediador. Estudei Marketing e sentia que faltava uma comunicação melhor da indústria com o bar/bartender e vice-versa. Portanto, me tornei um elo entre as pontas.

O bartender brasileiro Kennedy Nascimento no bar Boca de Ouro em São Paulo

E o que te faz vir ao Boca de Ouro são os momentos de escape para fugir do estresse do dia a dia ou para celebrar? A propósito: você bebe todos os dias?

Costumo vir ao Boca de Ouro para celebrar. Desde que comecei a trabalhar nessa indústria, sempre foi muito claro para mim a maneira com a qual eu deveria lidar com o consumo de álcool. A relação com o vício é algo sério, veja por exemplo quem fuma: se está feliz fuma, se está nervoso fuma, se está ansioso fuma e por aí vai. Acho que podemos controlar essa dinâmica para se tornar um momento de celebração.

Se as coisas vão mal na vida ou o nível de estresse está alto, não vou por esse lado (beber), se não isso se tornará sempre um escape e não será prazeroso, podendo virar um vício e uma dependência. Esse é um hábito que adquiri pra tudo, não somente para bebida, inclusive para charuto, por exemplo, assim como cerveja.

Você me contou há um tempo que seu drink preferido é o Daiquiri, que inclusive é o nome de sua Golden Retriever. Me conte sobre seu Último Drink aqui no Boca.

Ele me remete à simplicidade. Quando penso em coquetelaria, como um todo, os fatores glamour e complexidade são evidenciados e obviamente estão presentes em muitos drinks, técnicas e ferramentas; mas a simplicidade continua sendo o que faz um clássico: desde ingredientes simples que podem ser achados no mundo inteiro quanto a forma de fazer.

Mesmo sendo um dos drinks mais simples que existe - rum, limão e açúcar - Daiquiri é um dos mais difíceis de achar um realmente bom, porque exige muito do bartender a competência de equilibrar acidez, doçura, teor alcóolico e diluição da água. Em outras palavras, é o "arroz e feijão" do bar.

Sobre tendências: qual a importância delas na coquetelaria e as mesmas podem ser aplicadas a profissionais como você que se dedicam aos clássicos?

Quando paramos para analisar os últimos 100 a 150 anos da coquetelaria, os clássicos sempre se mantiveram, independente da tendência, porque a história é muito cíclica, ou seja, fatos que aconteceram vem se repetindo.

Veja por exemplo o que aconteceu no século 18, por exemplo, com o nascimento dessa cultura de coquetelaria na qual tudo era muito regional (os ponches por exemplo eram de regiões especificas); ou quando surgiram os primeiros livros de coquetelaria, em que as receitas começaram a se juntar e a globalização delas originiou a reprodução de clássicos em diferentes lugares.

No século 20 tivemos picos de qualidade e ferramentas crescendo nos EUA, e depois a Era Negra trouxe coisas boas e ruins, como a Lei Seca e profissionais americandos migrando para outros mercados a trabalho. Com isso, mercados caribenhos cresceram em cima de clássicos criados para mascarar o sabor do álcool, e quando a lei foi revogada, muitos profisisonais voltaram e agregaram esse conhecimento ao seu mercado local.

Houve um boom na coquetelaria, depois retornamos à Era Negra nos 80 e 90 quando a publicidade impulsionou o consumo entre jovens, com vodka e energético e gin tônica, isto é, drinks fáceis para beber num volume muito maior - isso fez com que essa tradição de receitas clássicas fosse perdida.

Já no começo dos anos 2000 veio um renascimento da coquetelaria: Dale DeGroff (americano super respeitado e considerado o Rei da Coquetelaria) impulsionou esse movimento, investindo e cuidando de bares que nasceram para se tornar bar de coquetéis, sem contar mais qualidade e tecnologia da gastronomia sendo aplicada na coquetelaria - a gastronomia ajudou a resgatar a cultura dos coquetéis.

Todo este contexto histórico é pra dizer que vivemos o melhor momento na história para se trabalhar neste mercado e ser um bartender: nunca os clássicos foram tão populares como hoje. E como sabemos que esta história é muito cíclica, temos uma enorme responsabilidade de manter essa "alta" e não deixar o mercado chato, como vimos no mercado dos vinhos, com tantas regras banalizando o consumo.

É nossa responsabilidade como indústria e bartender aproximar cada vez mais os coquetéis do público e tornar a coquetelaria acessível. Mesmo havendo muitas tendências e novidades, o clássico sempre se mantém.

o bartender Kennedy Nascimento em seu bar preferido em São Paulo
Drink Daiquiri do bar Boca de Ouro em São Paulo
Detalhes do bar paulistano Boca de Ouro

Depois que um bartender aprende as técnicas necessárias para exercer seu trabalho, o que faz este profissional continuar a ser um bom bartender?

Acho que a gente nunca para de estudar. Assim como os chefs de cozinha, a coquetelaria está muito próxima da gastronomia nesse sentido, pois há muitas técnicas que um profissional precisa ter para se especializar, dominar e se tornar mais completo.

No meu caso, o que mais aprendi com o Spencer foi o direcionamento de olhar de carreira e como precisamos estudar a base histórica para ter referência do que já conteceu e nos prepararmos para o futuro frente ao mundo cíclico. Ao mesmo tempo, entender que muitas coisas já foram criadas e, se você não estuda, poderá dizer que está criando algo novo quando na verdade isso já pode existir há séculos.

Para se tornar um profissional completo temos que conhecer todos os destilados, como são feitos a vodka, o whisky, o conhaque, até o café, o vinho, o refrigerante e a kombucha. Porém, vejo que ainda falta muito desse conhecimento na especialização dos bartenders.

Tenho muito contato com chefs de cozinha que me permitiram conhecer técnicas, ferramentas e elaboração, como desenvolver infusões, por exemplo. Se eu não as conhecesse, poderia levar até um mês para desenvolvê-las. É uma atualização constante.

Você se inspira em alguém do mundo da coquetelaria?

 Me inspiro muito num grande amigo chamado Erik Lorincz que foi chefe de bar por muito tempo do American Bar, no The Savoy - bar que considero minha referência - existe há mais de 100 anos e onde sempre tive o sonho de trabalhar. Até que recebi a proposta, mas infelizmente precisei recusar pois estava em outro momento de vida, quando ganhei meu primeiro campeonato mundial de coquetelaria em 2017 (nenhum brasileiro conquistou esse posto até hoje). Naquela época, terminando a Universidade, eu também já havia recebido dois convites da Diageo para ser Brand Ambassador da marca; quando o terceiro convite chegou, resolvi aceitar. Erik não está mais no American, pois abriu seu bar chamado Kwant, onde nutre uma atmosfera maravilhosa e impecável, mantendo uma equipe unida. Ele é um cara super simples com a hospitalidade dentro de si.

Onde você enxerga que a coquetelaria está evoluindo muito e onde é a maior referência no assunto?

Vejo essa evolução em alguns lugares. No mercado argentino, por exemplo, esse boom vem acontecendo nos últimos cinco anos, cuja cultura de coquetelaria está crescendo muito. A América Latina como um todo vem ganhando uma maturidade maior porque sempre foi tratada como um mercado quase que Caribenho, ou seja, com uma cultura de drinks frutados e doces. Há uma evolução de paladar acontecendo no mercado, inclusive no brasileiro. Dos mercados referência vejo Londres, sem dúvida, e também Estados Unidos onde há ótimos bares mas, assim como no Brasil, há um número gigantesco de estabelecimentos, mas apenas alguns pontuais fazendo trabalhos extraordinários.

*E qual seu paladar pra bebida?

Gosto muito de equilíbrio. Daiquiri, claro, que mistura uma base cítrica, alcoólica e açúcar, fica perfeito. Mas bebo de tudo, desde um amaro como Negroni, um Sour como Daiquiri, um mais alcoólico e complexo como Old Fashioned, mas o que mais costumo beber nos meus momentos de apreciar a bebida são drinks mais leves e simples, como o Daiquiri.

Falando um pouco de rotina e estilo de vida. Você é daqueles que planejou tudo até chegar aqui e continua assim ou deixa rolar?

Há coisas que planejo muito e outras que planejo zero. Conhecer a Escócia, recentemente, foi sem plano algum: de um dia para o outro aluguei um carro, um apartamento, e fui sem idéia do que fazer, sem destino. Mas geralmente esses planejamentos zero são situações que não envolvem risco. Isso já não acontecerá com a abertura do meu bar.

Venho falando de ter meu próprio bar desde 2012 e me sinto cada vez mais preparado, mais seguro e entendendo o momento. Mas ainda estou aprendendo muito desse mercado e isso não deixa de ser um complemento à minha carreira; além de me sentir muito útil na Diageo e poder dar aula na ABS (Associação Brasileira de Sommeliers) onde ajuda a formar novos profissionais. Tenho muito desejo de lançar um livro de coquetelaria, mas acho que não conseguirei ainda este ano; acredito que preciso desenvolver algumas coisas antes de ter meu bar.

Mas sobre o conceito do meu bar, vai depender de alguns fatores. Se eu fizer sozinho e sem investidor, será mais próximo do estilo do Boca de Ouro, começando pequeno e fazendo tudo, no controle de todos os processos. Sei que há uma expectativa muito grande em cima de mim e isso me dá um certo receio de frustrar o público ao começar pequeno e devagar.

Outra possibilidade seria realizar o meu sonho com algum sócio-investidor, mais próximo do que é o American Bar, elegante e perfeito do começo ao fim, com a experiência sendo entregue de maneira mais simples, porém cuidadosa, com uma atmosfera que poderia sobreviver pelos próximos 100 anos.

Quais são seus três bares preferidos no mundo? 

Em Londres são minhas referências o American Bar, por sua história inigualável, além do Kwant e o Termini, um bar-café cujo dono uniu conhecimento técnico-científico da perfumaria ao bar. Outro lugar que adoro e consegue mesclar o clássico e o contemporâneo chama Door 74, em Amsterdã, na Holanda, o primeiro speakeasy da cidade.

Comentários

O comentário será moderado pelo admin antes de ser exibido