My Last Drink com o bartender italiano Ciro Adriano de Georgio

A principal razão que tem me levado entrevistar bartenders do mundo todo e indagá-los sobre qual seria o último drink de suas vidas não é apenas saber que drink seria esse. Mas sim, tão instigante quanto, é descobrir que local esse bartender escolheria para tomar seu Last Drink. Ora, qualquer um pode fazer um Negroni, um Dry Martini ou um Cosmopolitan em casa, não é mesmo? Portanto acredito que o significado profundo do último drink de nossas vidas certamente mora no ambiente, na companhia e na atmosfera escolhidos que dão luz a este momento.

Por isso tudo confesso que subestimei o desenrolar e o resultado dessa entrevista antes mesmo de acontecer. Imaginava um enorme desafio compor um cenário para esta pauta, enquanto todos os bares e restaurantes do mundo mantêm portas fechadas, em meio ao Covid-19, e meu próximo entrevistado não teria onde me levar. Mas o bartender italiano Ciro Adriano de Georgio me surpreendeu demais e mostrou que o último drink de sua vida poderia ser reproduzido num lugar tão magnífico, que hoje penso: este sim seria um belo lugar para tomar o último drink da vida.

Numa tarde de segunda-feira ensolarada, durante a primavera de Amsterdam, fui conhecer o bartender Ciro num dos canais mais lindos do bairro Westerpark. Mantivemos todas as regras de distanciamento social e ali mesmo ele improvisou e preparou seu Last Drink sobre um "balcão de bar inusitado": sobre uma mesa de bronze e aço que pertence ao espaço público, na esquina de sua casa, Ciro montou sua estação de trabalho, com todos os apetrechos necessários - curiosamente fui descobrir que este móvel foi criado pela artista Merijn Bolink, há 15 anos, que o batizou de "Apen aan Tafel" (Macacos sobre a Mesa). Em tempo: para os que pensam que infrigimos alguma regra, não, a mesa é e pode ser usada pela comunidade do bairro.

Digamos que não é toda tarde de segunda-feira que me vejo na companhia de um grande bartender, preparando um delicioso coquetel, em frente a uma paisagem capaz de nos fazer esquecer o momento em que o mundo todo vive, de tantas incertezas, privações e isolamento. Depois de alguns minutos de conversa, pude notar que Ciro não é uma pessoa qualquer: inquieto e de espírito livre, apaixonado pela vida - assim como seu pai era -, ansioso por mudanças, devoto ao trabalho, sonhador e, assim como a maioria dos italianos, tão atrelado ao peso que laços familiares exercem sobre si.

Amei fazer essa entrevista e depois de conversar com Ciro percebi que mais interessante ainda do que descobrir qual seria o último drink da vida de um bartender - e onde -, é entender a essência de suas vidas: todos são super trabalhadores, viciados em viagem e movidos a mudanças de vida, carregam memórias afetivas que moldam seus discursos, comprometidos até a última gota de sangue em agradar a clientela (com muita generosidade), e todos tem em comum, eu diria, uma alma meio solitária. Mesmo a carreira de um bartender sendo tão rodeada de pessoas, a todo momento, acredito que o caminho que todos devem percorrer pode ser bastante solitário, ainda que alegre e extrovertido.

Mudar de Napoli para Amsterdam certamente exigiu de Ciro muita coragem e paixão. Mas depois de 07 anos morando na Holanda - onde ele ganhou o prêmio de Melhor Bartender -, Ciro está pronto para seu próximo grande passo. Antes de voar de novo, tive o prazer de conhecê-lo e compartilho nossa conversa cujo cenário ao longo de um canal só mesmo Amsterdam para proporcionar:

O bartender italiano Ciro Adriano de Georgio prepara um Dry Martini em Amsterdam

*De Napoli para Amsterdam tem muita diferença! Por quê essa mudança?

Nasci e cresci em Napoli e minha família tinha um business numa ilha próxima chamada Ischia. Meu pai fez inúmeras coisas em vida, mas grande parte foi dedicar-se a video game, desenvolvendo e criando novos jogos. Naquela época eu passava todas as férias escolares em Ischia e depois, mais velho, quando já estava na Universidade (Comunicação Midiática), comecei a ajudar no negócio da família. Num determinado momento meu pai percebeu que precisava mudar pois com o boom da internet aqueles video games não faziam mais sucesso. Então investiu num espaço que até 2019 funcionou como misto de bar e balada. Ischia é uma ilha turística, mas nosso bar era focado bastante no morador local, por isso trabalhávamos inclusive na temporada de inverno. Um dos meus irmãos (sou o mais novo de dois homens e uma mulher) já era apaixonado por coquetelaria e isso me inspirou, tanto que fui a Londres melhorar meu inglês e "beber na fonte", já que sua indústria é tão rica. Voltei para Ischia mais preparado para trabalhar no bar e desde então não parei de me dedicar, estudar, fazer cursos. Descobri um novo mundo e percebi como sou aficcionado pela cultura, herança e raízes históricas da coquetelaria.

Mas voltando à sua pergunta, sair de Napoli basicamente foi para me desafiar e ver novas perspectivas de mundo. Um amigo com quem eu estava em Roma durante o campeonato do licor Disaronno me contou que um conhecido estava para abrir um bar em Amsterdam. Não pensei duas vezes em pegar o primeiro avião para fazer a entrevista mesmo com a incerteza se passaria ou não. Aquela foi a primeira vez em que eu pisava na Holanda! Fiquei encantado por essa cidade cheia de arte e cultura, linda, vibrante, que dá uma sensação de pequena embora super cosmopolita. Consegui o emprego neste bar chamado The Butcher e mudei em 2011 até que 03 anos depois decidi rodar o mundo: Australia, Istanbul, Dubai, Sri Lanka, Cambodjia, Tailândia, Hong Kong e Cingapura. Parei em Sidney por 01 ano, viajei novamente para a América do Sul, incluindo Brasil, e finalmente retornei a Amsterdam para trabalhar no Tales and Spirits, ainda hoje um dos bares mais reconhecidos da cidade.

Num determinado momento eu não sentia mais aquele entusiasmo que nos motiva no trabalho e assim abri minha própria empresa de consultoria. Pouco a pouco fui construindo meu network até que uma importadora holandesa me chamou para ser Embaixador. É uma empresa muito bacana chamada "A Brand New Day" para a qual ainda presto serviços e com a qual compartilho princípios e ideais. Meu trabalho é dinâmico seja preparando coquetéis ou organizando eventos para bartenders ou mesmo me envolvendo em campanhas. Sou muito grato pela oportunidade que eles tem me dado.

*Me parece que você é inquieto e não gosta de se apegar muito, não é?

Sim! E isso nem sempre é um bom sinal! Tanto que algumas pessoas dizem que tenho medo de comprometimentos. Mas a verdade é que amo viajar, conhecer de tudo um pouco, e acho que se ficarmos somente num lugar e vendo somente um tipo de perspectiva, nunca seremos capazes de fazer comparações na vida. Viajar inclusive proporciona novos repertórios. Não tenho feito muitas viagens desde que voltei da Australia em 2016, mas certamente é uma das coisas que mais gosto de fazer na vida.

*Esse pesamento tem a ver com o projeto "gipsy-overthinker"? (nome do seu Instagram).

Sem dúvida. É um apelido que criei anos atrás porque explica um pouco da minha natureza. Me considero um pouco cigano porque viajo demais e tenho dificuldade em me sentir em casa em certos lugares, mas em alguns outros posso me sentir completamente parte daquilo. Sou um pouco inconstante, também, por isso preciso de alguns escapes e gatilhos para me motivar a todo momento. Tenho amigos em Amsterdam mas sei que não pertenço a este lugar, mas sim, ao mundo. E a palavra "overthinker" (pensa demais) é porque penso além do que deveria, minha personalidade é incansável e me faz ir sempre além, trabalhar além da conta e sacrificar também meu tempo pessoal.

O bartender italiano Ciro Adriano de Georgio

*E qual seria seu Last Drink?

Definitivamente seria um Dry Martini porque foi o primeiro coquetel que provei na vida. Quando digo provar significa roubar alguns goles do drink do meu pai, que era apaixonado por Martini e Negroni - apaixonado, inclusive, pela vida, de um modo geral. Ele faleceu de câncer no pulmão quando tinha 73 anos e até o último minuto de sua vida continuou fazendo planos; ele era cheio de energia, com uma personalidade forte e um caráter ímpar, amável com as pessoas. E era o centro da minha vida pessoal e profissional. Tenho essa lembrança de estar com ele e meus irmãos enquanto conversavam em torno de uma mesa no bar Calise, um deles já tinha idade para beber e peguei sua taça para dar aquela provadinha que muitas crianças fazem por curiosidade, ou escondido. Lembro de ter detestado, óbvio, mas meu pai dizia que no futuro eu entenderia o prazer do álcool. Anos depois tive o privilégio de bebermos juntos no seu bar em Ischia. Essa é a parte emotiva que me faz pensar no Dry Martini como o último drink, mas também o enxergo como uma metáfora da vida e do meu trabalho: requer as habilidades necessárias, difícil de atingir mesmo sendo muito simples.

*Não podemos ir a nenhum lugar, quase tudo fechado e você improvisou me convidando para este canal que não é nada mal para um Last Drink. Mas se pudesse me levar ao local exato onde você tomaria o último drink de sua vida, onde seria?

Honestamente nunca pensei onde seria esse lugar. Talvez porque sendo um bartender acho que o lugar mais perfeito seria atrás do balcão do meu próprio bar, onde eu mesmo pudesse fazer meu próprio Dry Martini. Adoraria poder prepará-lo com alguém especial ao lado, amigos ou família. Mas se eu tivesse que escolher um outro local para o meu Last Drink como cliente, certamente seria em frente ao jardim externo do primeiro bar que minha família teve em Ischia, chamado Alchemie.

*Você ganhou um prêmio muito importante um tempo atrás.

Tive muita sorte em poder participar de diversas competições ao longo da minha carreira mas o prêmio que mais celebrei - principalmente porque não é patrocinado por nenhuma marca - é o de Melhor Bartender da Holanda, em 2014. Qualquer um pode participar e precisa seguir guidelines como velocidade, criatividade, conhecimento histórico, técnica, eficiência. É uma competição bem completa organizada pela revista Entree, além de muito desafiadora porque exige destreza para preparar diferentes coquetéis e bebidas - ao mesmo tempo em que preparamos um drink temos que saber tirar um café fresco, assim como acontece em qualquer bar do mundo. Fiquei muito feliz e orgulhoso com o prêmio, mas infelizmente não consegui tirar vantagem - com contratos de patrocínio e buzz na imprensa, por exemplo - pois mudei para a Austrália menos de um mês depois do resultado. Fui sincero com a organização e contei que não adiaria essa viagem, mesmo se ganhasse, mas como isso não foi um impeditivo, competi mesmo assim. Sou muito sonhador e naquele momento viajar era tudo que eu queria. Confesso que havia um amor envolvido, uma garota pela qual me apaixonei... não terminamos juntos, mas valeu tudo a pena.

*Bebe todos os dias?

Não mais. Antes, quando trabalhava em bares, sim, às vezes pulando um dia ou outro, mas agora tento beber menos e mais por prazer. Pode ser uma taça de vinho que mesmo sendo um clichê italiano me traz boas memórias de nossa cultura e terra, como o solo e o tempo se expressam, que por sua vez me lembram família.

Ciro Adriano de Georgio prepara um Dry Martini
Como preparar um Dry Martini
Dry Martini em Amsterdam

*Quem ainda te inspira?

Andrew Nicholls. Ele foi um dos meus mentores e um dos primeiros com quem tive a honra de trabalhar. Andrew é Sul-Africano e veio para Amsterdam há muito tempo. Antes de conhecê-lo, me sentia um pouco intimidado devido à sua importância no cenário da coquetelaria. Mas ele é tão amigável e acessível, correto, humilde, além de muito divertido. Compartilhamos alguns valores que provavelmente nos uniram, tais como a importância de uma família. Além de ser um dos melhores bartenders que já conheci, Andrew é uma enciclopédia ambulante, tão inteligente, e me ensinou muito sobre bebidas e técnicas em geral, e também sobre comportamento humano, como tirar o melhor potencial das pessoas com quem trabalhamos. Ele não atua mais em bar, mas se dedica à sua marca própria de rum chamada William George.

*Qual seu paladar para bebida?

Gosto de sours como Daiquiri e Royal Bermuda. São drinks frescos e de modo geral prefiro os mais refrescantes.

*Assim que um bartender domina as técnicas para se tornar um bom profissional, o que precisa fazer para continuar evoluindo?

Primeiro de tudo requer curiosidade, o propulsor para melhorar e crescer. Se permanecemos parados, não será bom, pois tudo que tem vida precisa amadurecer ou mudar. A curiosidade sempre dá razões para aprender mais. Pessoalmente, adoro ler livros mais antigos e ver como tudo era feito antes, porque muitos coquetéis e técnicas vem dos Clássicos. Claro que é necessário ser ao menos um pouco criativo para criar um Clássico. O que chamamos de inovador e ousado, hoje, talvez em 10 anos se torne um Clássico. Se pensarmos no coquetel Trinidad Sour, facilmente reproduzido em qualquer bar do mundo, não é um Clássico mas um coquetel contemporâneo criado em Nova York por Giuseppe Gonzalez , alguns anos atrás, cuja receita leva 45ml de bitter. Quando a vi pela primeira vez, achei que houvesse algum erro. Mas quando provei, entendi, que drink delicioso! Este é um exemplo de coquetel que uma pessoa pode atingir movida por criatividade e curiosidade. Não menos importante, também acho que um pouco de sorte e conhecer as pessoas certas no lugar certo ajuda também.

*Você não parece ser uma pessoa que se planeja muito; tem um jeito mais orgânico de viver, certo?

Sim e às vezes queria muito ser como pessoas que planejam a vida estrategicamente. Claramente nunca tive esse ímpeto dentro de mim, ao mesmo tempo em que sempre pensei que preciso encontrar o meu propósito de vida, aquilo para o qual nascemos, sabe? De certa forma acho um pouco triste nunca ter tido essa resposta. Ser um bartender não foi minha primeira escolha; meu pai e meu irmão abriram um bar e de repente me vi dentro desse business, que adorei, claro, mas não foi a minha escolha pessoal. Sempre tento olhar para o que realmente me traz motivação e como melhorar e alcançar novos objetivos, mas não é que isso fica martelando na minha cabeça. Não me importaria, por exemplo, ter meu próprio bar em Amsterdam, pequeno, com produtos italianos e tenho pensado muito nisso. Talvez a empresa para a qual trabalho me ajude nesta empreitada. Mas longe disso ser um sonho, como talvez poderia ser ter uma família e morar perto da natureza, ter mais tempo para mim e para eles, ficar um pouco distante da cidade e trabalhar menos. Não posso negar, no entanto, que mudo de ideia fácil.

*Que lugar do mundo você enxerga a coquetelaria se desenvolvendo?

Cingaura. Estive lá no início de 2015 quando a cena de novos bares estava apenas começando, novos bartenders chegando de tantos lugares do mundo e investimentos sendo feitos na indústria. Fui visitar o Manhattan Bar, um lugar magnífico, mas àquela época esquecido, ninguém o frequentava. Depois se tornou um dos melhores bares do mundo, super premiado. Digo isso porque num período muito curto de tempo a coquetelaria em Cingapura evoluiu demais, com muitas opções de bar hoje em dia.

*Três locais favoritos para tomar um drink, em qualquer lugar.

Connaught, em Londres; Jerry Thomas Speakeasy, em Roma; e o L'antiquario, em Napoli.

Comentários

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Cecilia Padilha
Nunca parei para pensar no último drink da minha vida... É algo para se filosofar durante a quarentena hhahaa beijos
Maria ines
Que delícia essa conversa à princípio não estava muito interessada mais depois adorei bjs


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