A natureza excêntrica e fascinante de um marchand Tibetologista
O quão apaixonada uma pessoa precisa ser, por um determinado lugar, que a faça dedicar toda sua vida em torno de um único assunto? E mesmo permanecendo, este determinado lugar, impenetrável durante anos e anos até se tornar, possível, visitá-lo? Esta é a história de Sjoerd de Vries, um excêntrico, simpático e eloquente holandês que conheci por acaso durante minhas andanças por Amsterdam.
Há mais de 40 anos ele está à frente da primeira e única galeria da Holanda especializada em antiguidades do Tibet, Nepal e Índia. Fiquei muito curiosa pra entender como ele chegou até aqui. Tudo começou quando Sjoerd, assim como toda a geração dos anos 70, se aventurava por Índia, Istambul ou Nepal numa busca, ideológica, para encontrar respostas e o significado de suas vidas, no que até hoje conhecemos como era hippie. "De repente me vi fascinado por Islamismo, Hinduismo e Budismo. Na capital do Nepal, Katmandu, cruzei com refugiados Tibetanos, pessoas tão maravilhosas! Quando terminei História da Arte descobri que era possível estudar, aqui na Holanda, a cultura Tibetana; não pensei duas vezes e voltei pra Universidade ", relembra Sjoerd.
Tal decisão o tornou um dos (pouquíssimos) seis tibetologistas do país. Impressionante! Quando eu imaginaria, na minha vida, conhecer e saber que existe uma profissão como essa? Nunca. Mais inusitado ainda foi perceber que a paixão de Sjoerd pelo Tibet foi, de fato, cultivada por um observador muito distante, já que estrangeiros foram banidos do país no século 18 (a repressão militar chinesa só foi suavizada no início dos anos 80).
Tibetologista significa estudar a cultura - como é o caso de Sjoerd - ou linguística, assim como a maioria dos profissionais holandeses, que se dedicam a traduções e análises de textos. "Eu sei ler e escrever em Tibetano, também posso me comunicar, mas não tenho, nem de longe, condições de entrar numa discussão com O Dalai Lama sobre vida após a morte ou qualquer assunto do gênero!", gargalha Sjoerd enquanto orgulhosamente aponta para uma retrato seu ao lado de "Sua Santidade", como ele mesmo descreve O Dalai Lama. Registro carinhoso que ele guarda do momento em que os dois se conheceram quando Sjoerd era o curador da coleção Tibetana do extinto Wereldmuseum, em Roterdam.
A verdade é que ter a sua própria galeria foi uma decisão estratégica na vida de Sjoerd. Segundo ele, foi uma saída para encontrar um emprego, já que naquela época nenhuma empresa se interessava em contratar um tibetologista. "Foi uma ótima combinação, ainda que muito ingênua: quando revejo as fotos da abertura da galeria, em 1979, só consigo pensar 'Como eu pude fazer isso?!' Não me faltava coragem nem entuasiasmo!". Acho que ele se deu muito bem: sua bela galeria, batizada Astamangala, está localizada numa parte nobre da rua Keizersgrachat, em Amsterdam. Desde o primeiro instante em que pisei lá dentro, imediatamente me apaixonei por tantas obras maravilhosas, como estátuas de Budas, pinturas Tibetanas conhecidas como thangkas, tapeçarias e objetos de rituais. Poderia decorar meu apartamento inteiro com todas elas!
Ao mesmo tempo com que ser o único em seu métier lhe garante pouca competitividade no mercado, requer grandes esforços para atender à exigente demanda de um nicho bem específico de compradores. "Você precisa ser meio maníaco para se tornar colecionador de uma parte tão pequena e peculiar do mundo; atraído por um período específico da história ou de um estilo, sempre querendo comprar mais e mais", confessa a respeito do perfil de sua clientela, da qual 97% é de qualquer lugar que não a Holanda.
Assim como a maioria de seus clientes vem de fora, o mesmo para a origem das peças de arte que Sjoerd comercializa. Ele explica que importar antiguidades do Tibet e do Nepal é considerado ilegal, já que se trata de patrimônio nacional. Por isso mesmo ele precisou construir sua reputação por toda a Europa, incansavelmente frequentando leilões e se aproximando de colecionadores, em especial na Alemanha e na Inglaterra.
Qualquer um que se indagar sobre o quanto acessível pode ou não ser comprar uma obra de arte da galeria Astamangala, já adianto que a minha favorita custa 9.000 Euros: uma estátua em bronze de um Buda sentado do início do século 16. Mas aqui vai uma dica, a quem interessar: de tempos em tempos Sjoerd seleciona alguns itens que precisam de novos ares colocando-os online em liquidação (a partir de 200 Euros pode-se comprar uma estátua de bronze tamanho miniatura). "Às vezes é assustador quando abro uma gaveta e olho para todos esses objetos que por tanto tempo os esqueci parados, simplesmente porque comprei demais da conta!", confessa.
Talvez seja isso mesmo a tal mágica na vida de quem trabalha com arte: se apaixonar loucamente por um objeto; desesperadamente sentir necessidade de adquirí-lo; guardá-lo até que nunca mais se lembre e o perca numa memória esquecida; sofrer, talvez, para admitir que esta peça precise de um novo propósito de vida; até que finalmente, num gesto generoso, ainda que monetariamente planejado, desista de sua propriedade para preservar o caminho natural e necessário ao transmitir uma obra de arte para novas mãos.
Sem dúvida alguma este movimento significa tanto o passado como o futuro de todos os objetos colecionados por Sjoerd em seu espaço; porém, para a minha decepção, não acontecerá o mesmo com sua galeria: "Fiz um pacto comigo mesmo: enquanto eu tiver condições de subir as escadas da minha galeria, por conta própria, continuarei aqui. A partir do momento em que eu não mais consiga, será o fim do meu negócio. Aqui é a minha galeria, com a minha personalidade, minhas coleções e não conseguiria deixá-la nas mãos de nenhuma outra pessoa".
Sjoerd espera que ele esteja apto a vender tudo antes disso acontecer. Sinceramente, eu também espero, pois é perceptível de ver sua alma já enraizada em todos os detalhes deste lugar. Caso isso não aconteça, ele me disse, "bem, minhas duas filhas poderão vender e usufruir de uma vida tranquila e maravilhosa depois!".